O caso “boate kiss” chacoalhou não apenas o mundo jurídico, sobretudo o criminal, por representar o que jamais se esperaria em termos de respeito a constituição e regras do jogo, postulados básicos de um estado democrático e constitucional de direito, que enfrentarão tempos sombrios e encontram em poucos a resistência necessária para termos esperança em dias melhores.
No entanto ele não é um caso isolado, mas coloca em destaque o extremo e o cotidiano que tem se tornado a advocacia criminal: uma luta para que investigações, denúncias, processos e decisões criminais tenham como norte não apenas ou majoritariamente a emoção e o apelo social – que eu e você externamos e assim continuaremos fazendo invariavelmente (talvez até que um dia tenhamos uma humanidade em outro estágio civilizatório) – mas sim as regras democraticamente e legalmente válidas e vigentes.
Diariamente denúncias são oferecidas – e recebidas – Brasil afora, sem que haja efetivamente justa causa para tanto. E quando falamos nesse justa causa, falamos sobretudo da existência real de elementos contundentes de que determinado crime foi praticado, portanto que uma determinada conduta foi praticada e que ela é, de fato, considerada criminosa, e que hajam elementos robustos para comprovar a participação dos evolvidos. E o que parece ser obvio, muitas vezes não é.
Outros tantos são os casos de condenações criminais que transgridem, sem o menor pudor, as regras estabelecidas no Código de Processo Penal, utilizando o pano de fundo popular de que “os meios justificam os fins” e que se determinada regra foi violada pela Justiça, mas não “casou prejuízo ao acusado”, pode ser superada. A mesma Justiça, aliás, não age no mesmo sentido, quando uma regra é violada pela acusado… aliás, se ele está na cadeira de acusado é justamente por estar sendo imputado a ele uma violação de regra.
A existência de dúvida jamais pode ser a certeza de submissão a um processo penal, inclusive perante o júri, como se tem admitido. Ao aceitar tal entendimento, ignoramos a própria razão de ser do sistema. O mesmo se diga de denúncias rasas que muitas vezes são alimentadas por anabolizantes, revelados pelo peso da caneta (ou teclado) de quem já se distanciou e muito da realidade e busca uma justiça conceitualmente por ele construída, com alicerce em seus próprios conceitos, crenças e verdades, senão fomentada pela redoma que vive e convive.
O que se espera, aliás como o próprio sistema estabelece, é que não sejam utilizados subterfúgios para que se alcance aquilo que a lei penal não busca ou não pode atingir – ou não deveria (e vale lembrar que o direito penal tem como função proteger determinados bens jurídicos, servindo igualmente como limitador do poder do estado para que a barbárie e interesses pessoais, momentâneas ou mesquinhos não conduzam qualquer caso).
A verdade é que vivemos um momento crítico no processo penal brasileiro, justamente pela condução que alguns – talvez muitos, mas nem todos – passaram a fazer dos poderes que acreditam ter e que, invariavelmente, desembocam na tentativa de “fazer justiça”, o que leva a supressão de direitos, sobretudo pela criação de interpretações onde elas não cabem ou utilização de subterfúgios para construir casos penais e condenar pessoas, afinal para esses “os meios justificam os fins”.
O que choca não é o apoio popular de acusações, condenações, violência policial (aliás uma patologia do nosso distanciamento da humanidade e da certeza de que nós somos melhores do que eles) mas a transgressão e subversão dos postulados que devem imperar na interação de determinada atores do sistema de justiça.
Aliás, é bom dizer que o tal subterfúgio não é vedado pelo direito penal. A verdade é que ele não pertence a tal universo, pois choca-se com o que é da sua própria natureza excepcional e dos postulados fundadores de sua essência, que impedem que acusações ou condenações sejam construídas por estradas vicinais e paralelas, caminhos que podem ser até admitidos (muitas vezes prestigiados) em outras áreas. Mas não aqui. Não no direito penal, sobretudo sobre a ótica da defesa.
Açoitamento e práticas de tortura foram há muito banidas, acreditava-se. No entanto vemos hoje formas mais grávidas e danosas de tortura: processos penais iniciados e concluídos com transgressão violenta de direitos e uso de estratégias inaceitáveis, como a criminosa inclusão de diversos crimes em acusações apenas para aumentar a pena em perspectiva e inviabilizar acordos ou mesmo força-los – isso sem falar, é claro, de construção de sentenças antes do desenvolvimento do próprio processo, que passa ser apenas um faz de conta para a defesa.
Sim, os tempos são sombrios para o direito penal e processual penal. É preciso coragem para defender a função que exercem na sociedade, pois em momentos de crise institucional, política e de segurança, passam a ser utilizados como remédio, como se a eles fosse possível trazer a cura, para causas que eles não devem intervir, senão subsidiariamente, como última alternativa e com a função de, limitando o poder estatal, proteger os nossos mais sagrados direitos.
É como remédio que ao ser administrado é preciso acertar a dose. Se utilizado em excesso ou para causa diversa daquele para a qual foi concebido estaremos entre o veneno e o agravamento da doença.